Autocrítica

Eu amo tanto a arte que a sei explicar perfeitamente. Quando me deparo com uma pintura, sei exatamente a que reconta cada tom, cada traço, até porventura saberei como tiritaram involuntariamente os músculos do polegar da mão do pincel do pintor, e por natureza saberei o que tal significa também, já que conheço a cor como se fosse o horário dos autocarros – e mesmo que eles não cheguem a horas, o horário nunca muda, e de qualquer modo, de tão bem que o sei e às subtilezas de tudo o resto em simultâneo, sei também quando se atrasarão e quando chegarão em antemão, pois tal é o ofício e o pão de cada dia de quem tem por tarefa apenas saber e julgar tudo tal como é.

E a poesia? Que mais é a poesia do que um grito exasperado de uma frase só, declarando-se aos sete ventos com mais assertividade e orgulho do que um político reitera as suas crenças e ideais? Cada palavra diz muito, mas quando se circunscreve por entre versos e estrofes, torna-se mais previsível do que um suspeito mentiroso, tendo as suas fabricações lentamente desmanteladas pelos seus próprios depoimentos durante uma interrogação – e que melhor detetive poderia uma esquadra pedir do que um crítico de arte?

Nada mais me ultraja do que esses presunçosos, imaginando-se compreendidos como eu, e ainda tendo a falta de pudor de me dizerem que tanto disto sabem como eu que tenho credenciais que validam o paladar. Devem-se achar acaso falando de filosofia ou doutras dessas patranhas onde todos falam e ninguém concorda – de que serve uma discussão sem resolução? É meramente um capricho humano, de tal modo sobejar em capacidades cognitivas que as até derrama indiferentemente nas ervas mortas e carbonizadas de um campo incendiado, esperando que de lá nasça uma grandiosa sequoia, fruto de esforço mal empregue – que treta! É por isso que a arte é pragmática, para que sirva de elevação do espírito humano, ao invés de uma pobre desculpa para partilha interpessoal, como se nos encontrássemos todos reunidos num círculo de alcoólicos anónimos. Pois se, para alguns, formas abstratas nada significarem, e para todos os outros fossem sempre coisas diferentes, de que serviu invocá-las sequer? E como monetizar as formas que mais merecem o seu devido valor, pois já todos sabemos que sem haver quem fiscalizar a liberdade, apenas nos resta a anarquia, e com a arte não poderia isso também ser mais verdade!

Eu sou quem mais ama a arte, sou o que tem mais cursos, diplomas e reconhecimento dos outros que também os têm, e eu decido os nomes que merecem ser ouvidos, e sou eu quem guio os sentimentos de todos os coitados e ignorantes, enxotando emoções erradas que nem cães vadios tentando intrometer-se no seio de uma casa digna e imaculada, com um propósito que decerto os ultrapassa. Sou eu que informo os artistas exatamente daquilo que eles pretenderam dizer, e como mesmo as palavras esquecidas e os devaneios encaixam de uma forma tão bela que não poderia ser menos que destino. Sou eu que os faço e sou eu que os derrubo, sou o que faz rolar o sistema como uma moeda rola sobre o tampo polido de uma mesa, sou os sentidos de todos os que aprendem a ser criativos exatamente como devem ser, para que não lhes ludibriem os seus próprios e levem a falsas conjurações, sou a verdade irrecusável num mundo de caos e mentiras, sou irrevogável e hei de ser o último realmente amando a arte, ainda quando esta morrer.

por Vasco Cruz