Entre o que fica e o que parte.
passo a porta do hospital
e o tempo é sempre o mesmo.
o relógio avança na parede,
mas aqui dentro o tempo não anda,
não passa,
não volta,
não espera.
o bip do monitor —
um som que já não assusta,
mas também nunca acalma.
uma linha reta.
um último reflexo, um último nada.
o monitor desligou.
dizem que fizemos tudo.
mas o que é tudo?
fecham-se olhos que vi abertos ontem.
mãos que apertaram as minhas, agora frias,
agora estáticas.
fico ali por um instante.
como se a minha presença ainda fizesse diferença.
como se aquele corpo agora vazio pudesse sentir que alguém ficou.
e depois saio.
porque há outros leitos,
outros nomes,
outros corpos ainda quentes.
dizem que tenho de me habituar, mas…
e o hospital segue.
sempre segue.
as vozes nos corredores, os passos apressados,
as capas cheias de exames, as prescrições.
como se nada tivesse acontecido.
passo para o corredor seguinte.
o som dos passos perde-se no chão lavado,
neste mundo onde tudo se limpa,
menos aquilo que fica dentro de mim.
o cheiro a antisséptico,
o tilintar dos soros,
o ranger das macas a deslizar.
há uma coreografia invisível
que ninguém questiona.
não há tempo para perguntas,
nem para silêncios demasiado longos.


por Joana Alcobia
mas eu paro.
às vezes, só por um instante.
a pensar no corpo que ainda há pouco respirava,
nos olhos que já não se fecham sozinhos.
e no nome que estava na ficha,
agora dobrada e arquivada,
como se fosse só mais um papel.
o tempo arrasta-me.
há mais uma visita para fazer,
um exame para interpretar,
um relatório para preencher,
como se isso fosse impedir que tudo se repita amanhã.
como se essas palavras num ecrã pudessem
conter algo daquilo que se perdeu.
alguém chama pelo meu nome.
sigo em frente.
ainda há vidas por segurar.
o corredor engole-me outra vez.
rostos passam por mim, brancos, apressados,
mãos carregam vidas em folhas múltiplas,
palavras soltas que deviam significar esperança.
mas eu sei.
nem sempre significam.
respiro fundo,
mas o ar cheira sempre ao mesmo.
não sei quando foi a última vez que senti um cheiro que não fosse este,
como o álcool que arde nas mãos.
há um leito ao fundo do corredor.
um paciente olha para mim com olhos de quem espera
que eu saiba o que fazer.
que eu saiba o que dizer.
que eu saiba.
mas hoje,
depois de ver mais um corpo tornar-se silêncio,
depois de fechar mais um par de olhos que já não vê,
eu não sei.
sento-me ao lado dele.
não digo nada.
às vezes, só estar é tudo o que tenho para dar.
mas eu vi.
eu estive lá.
e amanhã, verei de novo.
e o que faço com isso?
Associação de Estudantes do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto
Rua Jorge Viterbo, nº 228 Edifício A Piso 4 |4050-313 Porto
Contactos Gerais
963339528
geral@aeicbasup.pt