Meros Estudantes

Aos meus avôs, e a todos aqueles que lhes foi retirada a juventude para ir lutar para o UltraMar;

Às minhas avós, e a todas aquelas que foram subjugadas à condição da mulher daquele tempo, privadas da liberdade e restritas à posição de dona de casa:

“Meus senhores, como todos sabem, existem três tipos de estado: o estado social, o estado capitalista e o estado a que isto chegou”. Podia estar a falar dos tempos que correm, mas foi Salgueiro Maia quem proferiu estas palavras, ao reunir as suas tropas na madrugada de 25 de Abril de 1974, na Parada da Escola Prática de Cavalaria de Santarém. Mas este texto não falará dos Capitães de Abril. Falará, sim, de um ator menos referido quando se fala deste dia, é também um movimento, único, tão ou mais forte que o MFA, que é capaz de mover mares e oceanos: o movimento estudantil.

E é na cidade dos estudantes que este movimento foi muito importante para a queda do Estado Novo. Apesar de algumas vezes romantizadas e até exageradas, as crises académicas coimbrãs foram fulcrais naquele tempo.

Recuemos até 1944-45, o período do pós-guerra. Durante a primeira metade dos anos 50, raramente os meios estudantis se mostraram dispostos a romper o cerco do conservadorismo e do conformismo dominante, excetuando alguns momentos na Universidade do Porto. Logo após a instauração da ditadura, muitos estudantes juntaram-se aos revoltosos a 3 de fevereiro de 1927, em defesa da República (onde uns dias depois constaram na lista dos 100 mortos). Apenas cinco anos depois, em 1931, a polícia assassina João Branco, levando a uma onda de apoio de toda a cidade, que acompanhou o cortejo fúnebre.

As associações de estudantes eram dominadas pelo poder salazaritsta, através de direções eleitas por uma maioria de direita proveniente do CADC - Centro Académico de Democracia Cristã. Surge, então, motivada pelas quedas dos regimes fascistas pela Europa, a Direcção-Geral da Associação Académica de Coimbra (AAC) de 1944-45, presidida por Salgado Zenha - um estudante que sempre lutou contra o regime. Durou apenas poucos meses no cargo, após se opor a uma manifestação de apoio a Salazar, sendo, por isso, preso pela PIDE. Inconformista, funda, juntamente com Mário Soares e outros grandes nomes da revolução, o MUD Juvenil, desenvolvendo importantes ações de combate à ditadura ao longo de 1947 e 1948: greves e protestos estudantis, organiza a semana da juventude e a concentração em Bela Mandil, difunde o Manifesto à Juventude e dá o seu apoio às candidaturas do General Norton de Matos e de Humberto Delgado.

No entanto, é na transição dos anos 50 para os 60 que começamos a observar maiores mudanças no panorama estudantil - a mulher ganha relevância enquanto estudante, sendo-lhe permitido utilizar o traje académico; a criação, entre 54 e 58, de grupos académicos, de vertente artística, que já se distanciavam dos ideais da altura; começam a surgir, com a obrigatória subtileza dos tempos, memorandos e comunicados, espalhados pelos jornais (como o mítico Via Latina), expressando o seu desagrado pelas restrições ao associativismo (que funcionava apenas numa prática assistencialista, de prestação de serviços) e de uma vida universitária holística, expressa na legislação sobre as “atividades circum-escolares dos estudantes”: o conhecido decreto 40.900. Juntamente com a candidatura popular de Humberto Delgado, em 58, esta lei veio unificar a ação dos estudantes, disposta a defender liberdades e direitos, e a promover uma educação plural, contrastando com António Sérgio, um dos autores do dito decreto:

“Emancipar os homens, treinando-os no uso do proceder autónomo, – autodisciplinado, racional, humanista: tal é, com efeito, o verdadeiro objectivo de quem educa os jovens. Para os que tomaram consciência de ser de facto assim (e só não tomam consciência de ser de facto assim os que nada compreendem da grande questão pedagógica) todas as intervenções das autoridades do Estado nas associações formados pela Grei estudantil parecerão de reprovar e de rejeitar de todo, como anti-pedagógicas no mais alto grau. Sérgio, 1957: 9”

No início da década de 60, ainda existem algumas questões se as associações estudantis devem ou não intervir na política nacional, mas relembro Jorge Araújo, fundamental para a renovação do associativismo: “Os problemas dos estudantes não podem abstrair-se do conjunto dos problemas nacionais, desde que isentas de todo o partidarismo, mas assentes em princípios fundamentais de reivindicação". Com base neste mote, e com uma nova Direção Geral da AAC, surgem cada vez mais preocupações sociais, em especial com o papel da mulher, na Carta a uma Jovem Portuguesa, publicada no Via latina, da autoria de Artur Marinha de Campos. Nela, constava um desafio à condição da mulher, afirmando que não deveria sofrer da opressão e repressão mental, remetendo para uma luta pelos seus direitos.

Surge, então, a primeira crise académica, na primavera de 62. Um ano antes, na latada, já se viram cartazes de cariz humorísticos sobre o regime, e os órgãos praxísticos, também cruciais na oposição à ditadura, manifestam-se, suspendendo a praxe, cancelando a Queima das Fitas e decretam Luto Académico. Um dos hinos da luta dos estudantes surge por esta altura - Trova do vento que passa, de Adriano Correia de Oliveira e Manuel Alegre. Já Zeca Afonso lança uma das suas primeiras canções de protesto - Os Vampiros e Menino do Bairro Negro. Mas a verdadeira crise decorre da proibição de duas reuniões inter-académicas pelo regime: por terras coimbrãs, realiza-se, contra a decisão governamental, o I Encontro Nacional de Estudantes e o II Encontro Nacional de Imprensa Estudantil. Em ambas, há importantes debates sobre a urgência da democratização do ensino e da remodelação do movimento associativista. No entanto, o reitor Guilherme Braga da Cruz escala o conflito entre a Academia e a Ditadura, levando a estudantes presos e suspensos e mudando os estatutos da faculdade, de forma a restringir ainda mais as liberdades das AEs.

por José Guilherme Silva

Plenário à entrada da Faculdade de Letras de Lisboa. Fotografia disponível em 50anos25abril.pt

Pela capital, novos problemas: o governo decide cancelar o dia do estudante na véspera e reforça a polícia de choque para a cidade universitária, levando à mesma situação de Coimbra: prisão e suspensão estudantil (que leva à demissão de Marcello Caetano enquanto reitor da universidade de Lisboa). Nuno Caiado destaca este período como o surgimento do movimento sindicalista: “o sindicalismo nasceu aqui, quando as estruturas associativas toleradas pelo regime conseguiram assegurar para si a legitimidade formal da representação dos estudantes”. Efetivamente, constatou-se uma união - verificada também pela greve às aulas e greve de fome em ambas as cidades, e o decreto do luto académico - e vontade de mudança entre as várias associações do país, com espaço aberto para todos discutirem, quer em plenárias (Lisboa), como em Assembleias Magnas (Coimbra), e conseguiu causar medo no governo ditatorial.

Chegamos a 1969. Após inspiração de movimentos franceses de 1968 e marcados por descontentamento pela Guerra Colonial, luta-se não só pela democratização do ensino, como das estruturas socioeconómicas, com alguma base no marxismo. Se, noutros tempos, o discurso deveria ser apolitizado, agora é precisamente o contrário, potenciando a contestação ideológica e pedagógica e promovendo a congregação da maioria de estudantes possível, para que todos estivessem a par da revolução e utilizando a tradição académica como arma.

Tudo isto culmina na grande crise académica de 69, marcada por um episódio icónico na história de Coimbra: a 17 de abril de 1969, Alberto Martins, presidente da DG-AAC, durante a cerimónia de inauguração do Edifício de Matemáticas (onde participaram o Reitor e Ministro da Educação, que após esta situação, acabaram por se demitir) levanta-se e diz: «Sua Ex.ª, Senhor Presidente da República, dá-me licença que use da palavra nesta cerimónia em nome dos estudantes da Universidade de Coimbra?»

Após um silêncio ensurdecedor absolutamente histórico, a palavra é-lhe negada e abruptamente se encerra a cerimónia, levando a que a comitiva fosse vaiada à saída. Durante a noite, Alberto Martins é detido à porta da AAC e muitos dos seus companheiros são presos e atacados pela PIDE por protestos pela democratização do ensino.

15 dias depois, quando a situação parecia estar mais calma, o Ministério da Educação ordenou o encerramento da Universidade e a suspensão das aulas até à época de exames. Uns dias antes, uma Assembleia Magna decreta luto académico, exortando os estudantes a transformar as aulas em debates sobre a atual situação e é publicada a “Carta à Nação”, numa estratégia de abertura do movimento ao exterior. Destaco uma frase crucial: “a nossa luta só poderá fazer tréguas quando tivermos atingido uma Universidade Nova num Portugal Novo”.

Estudantes a descer em direção à AAC, após a inauguração. Fotografia disponível em 50anos25abril.pt

Pondera-se, então, a greve aos exames - esta muito difícil, pois estava dependente da adesão de uma quantidade muito grande de estudantes e a reprovação dava direito a passagem direta para a Guerra Colonial. Assim, realizaram-se duas Operações de protesto pacífico - a Operação Balão e a Operação Flor, onde se distribuíram balões e flores pela baixa de Coimbra.

No futebol, a equipa da AAC já tinha associado o movimento dos estudantes: entrou no relvado da primeira mão da semifinal vestida toda de branco e com braçadeiras negras, em sinal de luto académico. Terminam o jogo com uma vitória de 2:1 sobre o Sporting, e lançando a preocupação sobre as autoridades. Dias depois, na segunda mão, em Coimbra, no velhinho «Calhabé» - completamente cheio - os estudantes, como forma de protesto, colocaram uma fita adesiva sobre o símbolo da AAC, enquanto nas bancadas os cartazes pediam «Democratização do ensino» e «Ensino para todos». Os estudantes venceram por 1x0 e garantiram a presença na final da Taça em Lisboa, onde iam defrontar o Benfica.

Na final da Taça de Portugal, o Regime mostrava claros sinais de preocupação. Temia-se que a final fosse utilizada como palco de uma gigantesca manifestação contra o regime. Ponderou-se a não realização do jogo, pensou-se adiar o encontro, mudar o local da final.

Final da Taça de 1969. Fotografia disponível em 50anos25abril.pt

Todas as altas figuras do Estado não marcaram presença no Jamor. A tribuna de honra encontrava-se estranhamente deserta, em contraste com as bancadas que estavam à «pinha». Por sua vez, a RTP, pela primeira vez desde que iniciara transmissões da Taça, não transmitia a final e as bancadas estavam infiltradas por centenas de agentes da PIDE, enquanto a FPF informava a Académica que o clube estava impedido de atuar de branco ou com qualquer forma visível de luto.

Contudo, os estudantes encontraram forma de contornar a situação e passar a palavra de contestação ao regime, criando uma primeira mini-manifestação de apoio à Academia na chegada à Estação de Santa Apolónia. Em Coimbra, tinham ficado o treinador suspenso e mais alguns dirigentes, enquanto Artur Jorge, a estrela da equipa, se vira impedido de jogar a final, obrigado a prestar serviço militar.

Mais tarde, nas imediações do Estádio Nacional, 35 mil comunicados foram distribuídos aos espectadores, com o objetivo de expor as razões da luta estudantil. O jogo começou e foi decorrendo com uma estranha acalmia, dentro e fora do relvado. Contudo, tudo mudaria após o intervalo, quando os estudantes levantaram os cartazes e o resto do estádio finalmente percebeu que estava num comício contra o Regime. Palavras de ordem surgiram nas bancadas para todos lerem: «Melhor ensino, menos polícias», «Estão 36 estudantes presos», «Estudantes Unidos por Coimbra», «Universidade Livre».

O ruído que vinha das bancadas chegava ao relvado. Dentro e fora do campo, a nação benfiquista acordava para a situação. Muitos adeptos encarnados, e inclusive jogadores, afirmaram mais tarde que esta teria sido a derrota mais saborosa do Benfica. Membros da oposição esperavam ardentemente pela vitória dos estudantes, cientes do significado político de tal resultado. E tudo parecia estar bem encaminhado quando Manuel António fez o 0x1 para a Académica a nove minutos do fim. Quatro minutos depois, António Simões repôs a igualdade e obrigou a prolongamento. No tempo extra, os academistas perderam o ritmo e o Benfica, através do inevitável Eusébio, marcou o segundo golo e deitou por terra o sonho dos estudantes. No campo, a Académica perdera, mas fora dele, o resultado seria diferente.

De 70 a 74, foi o momento em que mais se sentiu a intervenção política pelos estudantes, com o caso do Festival dos Coros e das greves dos estudantes de Medicina do Porto, o maior número de confrontos com o poder, a revolução proletária e a luta contra a guerra colonial, até se chegar à revolução.

Mas a lição de história já vai longa, o importante agora será refletir sobre o movimento estudantil: não há dúvida alguma - quando os estudantes querem, quando os estudantes acreditam, os estudantes fazem acontecer. E não há dúvidas também sobre o facto do associativismo estar vivo - uma FAP (Federação Académica do Porto) forte, uma ANEM (Associação Nacional de Estudantes de Medicina) com cada vez mais envolvimento estudantil, e uma luta incessante pelos direitos dos nossos estudantes. Talvez não tenhamos que lutar pela nossa liberdade individual nem contra uma ditadura, mas por maior e melhor alojamento estudantil e ação social, falta de inovação pedagógica e oportunidades em Portugal, emigração jovem, entre outros.

Assim, em jeito de conclusão, volto a relembrar Salgueiro Maia: “Não se preocupem com o local onde sepultar o meu corpo. Preocupem-se é com aqueles que querem sepultar o que ajudei a construir”. Não esqueçamos os heróis que neste texto ficaram relatados, e, mais importante, nunca se esqueçam, são muito mais que meros estudantes.

E, por isso, um feliz dia da Liberdade e um feliz 25 de abril!