Religião e Laicismo: Em Busca do Equilíbrio
A recente proibição da utilização da abaya muçulmana nas escolas francesas visa, segundo o presidente francês Emmanuel Macron, proteger a “laicidade” dos estabelecimentos de ensino. Este episódio tem reanimado a discussão sobre a liberdade de culto, sendo mais um capítulo na longa discussão sobre o papel do poder religioso na democracia.
A liberdade religiosa é, indiscutivelmente, condição necessária à democracia. No entanto, é difícil afirmar o mesmo em relação à laicidade: nas constituições europeias, apenas na constituição francesa aparece de forma inequívoca a palavra “laica”, “laico” ou “laicidade”, uma herança da Revolução Francesa que espelha a relação da igreja com o poder político no regime a ela anterior. Nos restantes países, as relações entre Estado e Igreja são de diferente ordem e restringidas de maneira diferente. Na Inglaterra, por exemplo, os 26 bispos anglicanos mais velhos têm assento permanente na Câmara dos Lordes, a câmara alta do parlamento.
Em teoria, a laicidade, se utilizada como garantia da liberdade e da igualdade, pode aperfeiçoar uma democracia. Garantir que qualquer influência espiritual é completamente expurgada do poder político pode nivelar o papel que cada instituição religiosa representa na sociedade. Mas e o contrário? Pode a laicidade antagonizar com a liberdade religiosa?
A peculiaridade na lei fundamental francesa acima mencionada é, de resto, congruente com a forma como o poder francês lida com a presença de símbolos religiosos nos espaços públicos, nomeadamente nas escolas. Desde 2004, são proibidos crucifixos, quipás e lenços de cabeça, entre outros, nos estabelecimentos de ensino franceses. Contudo, a legalidade da utilização da abaya, o tradicional vestido muçulmano que cobre a mulher da cabeça aos pés, foi sempre discutida até que, em agosto de 2023, o governo anunciou a sua definitiva proibição.
Cada cidadão, por seu direito inalienável, pode definir o que bem quer para a sua vida. Se assim o desejar, a vivência religiosa pode fazer parte deste percurso. Se assim o desejar, a utilização de símbolos religiosos também. Cabe ao Estado garantir que, independentemente da crença optada, o cidadão será capaz de a viver na sua plenitude, em segurança e sem ser alvo de discriminação. Há apenas uma única situação onde, indiscutivelmente, o Estado pode limitar a liberdade de expressão religiosa: quando esta põe em causa a segurança ou qualquer uma das liberdades de outro indivíduo.
E sim: não raramente os símbolos e os valores religiosos são incompatíveis com os princípios democráticos e com os direitos humanos. No entanto, a proibição da expressão destes valores pelos cidadãos não é possível em democracia. Basta olhar para o exemplo paradigmático da relação de diversas religiões com a homossexualidade, que a consideram um pecado. Não é concebível que um Estado possa proibir alguém de, por motivos religiosos, acreditar que a homossexualidade seja um pecado: o máximo que pode e deve ser feito é a proibição da externalização destes pressupostos homofóbicos em atos concretos que firam a dignidade individual, assim como uma forte promoção da igualdade.
A utilização de burcas ou escapulários nas escolas, quer por parte dos alunos, quer por parte dos professores, é algo que apenas à pessoa diz respeito, não sendo comparável ao exemplo enunciado no parágrafo anterior – uma vez que a utilização de símbolos religiosos não põe em causa qualquer liberdade individual (situação na qual a proibição seria necessária), não é justificável que essa forma de expressão seja interdita. Assim, não faz sentido que esta medida seja encarada como protetora do princípio democrático da laicidade, já que este não se encontrava ameaçado à partida.
Aliás, até que ponto é que a proibição não fere a liberdade individual? Não é irónico que isso seja feito para proteger a laicidade, quando esta deve ser um veículo de expressão igualitária e equilibrada de todas as crenças e não o completo apagamento da experiência religiosa? Obrigar alguém a retirar um símbolo religioso não é tão ilegítimo como obrigar alguém a usá-lo?


por Tiago Marques
Associação de Estudantes do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto
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