Visita de Camarim
Não gosto das noites de estreias, assustam-me. É inexplicável a ansiedade que as horas que antecedem o primeiro espetáculo de uma tournée me trazem: os figurinos que faltam ainda passar a ferro, a maquilhagem que tem de ficar perfeita, o medo tenebroso de que durante o monólogo que encerra o segundo ato as palavras fujam… tudo numa estreia pode correr mal, muito rápido e imprevisivelmente.
Adicionando ao interminável rol de coisas que podem efetivamente arruinar uma noite que se pretendia perfeita estava o facto de esta estreia não ser apenas “mais uma”. Na noite do dia 3 de março do presente ano seria estreada no Coliseu do Porto a peça de teatro que eu próprio escrevera. A peça que em poucos minutos se iniciaria com três secas pancadas no chão velho do Coliseu contava a história de um casal apaixonado cujo amor ao longo dos anos fora arruinado por dezenas de insignificâncias que se tornavam então incompatíveis com uma vida a dois. Este conto pretendia representar uma história que era minha e pela qual tinha grande carinho, era a história de um primeiro amor vivido ao expoente da loucura e assassinado por mim próprio numa jogada da qual apenas seria possível obter um único resultado: o fim.
“Faltam 15 minutos, a sala está neste momento a abrir”, avisou-me o diretor de cena numa curta frase em cujas entrelinhas se lia “Por favor não te atrases, penteia-te de uma vez por todas e vem ter com o resto do elenco”. Abandonar o camarim era naquele momento extremamente difícil. Assim que me levantava da cadeira em frente ao espelho sentia um calafrio que se dispersava ao longo de todo o corpo enquanto simultaneamente o estômago se contraía como se respondesse a um murro em seco. “Calma, é só uma estreia como tantas outras, daqui a pouco mais de uma horas estás em casa, de novo, perdido no teu sofá enquanto fumas um cigarro e bebes aquele tawny que te ofereceram pelo Natal”, repetia para mim próprio forçando um engano que parecia a única solução contra a ansiedade que se apoderava de mim.
Respirei fundo três vezes o ar velho do Coliseu e foi nesse momento que senti pousar sobre o meu ombro esquerdo uma mão com um peso que me era conhecido. “Não te lembras? É como voar… as primeiras linhas de texto custam mas depois da primeira canção, dos aplausos da primeira canção, chegar ao fim é um rápido voo”.
Silêncio. O camarim estava vazio. Dizer que naquele momento estava assustado era um eufemismo, eu sentira-o. O toque era o mesmo toque que tantas noites se despediu de mim avisando que se ia deitar e aquela voz era a tua, indubitavelmente a tua voz.
Assim que olhei de novo o espelho… lá estavas tu. Com o coração na boca empenhei toda a força que ainda me restava para me tentar voltar e olhar-te nos olhos mas não consegui. Todos os meus músculos estavam presos. “O que fazes aqui?”, atirei-te visivelmente irritado com aquela aparição repentina. “Tinha saudades tuas”. Aquela confissão inesperada deixou-me visivelmente abalado. Apesar de estarmos separados há já quase meio ano e de entretanto ter passado por duas fugazes relações, era-me impossível esconder o descontrolo que a tua presença ainda me provocava.
“E porquê passar por aqui hoje, na noite da estreia? Conheces-me, sabes como fico nervoso” resmunguei em tom baixo esperando que ela não me ouvisse. “Foi exatamente por isso que escolhi a noite de hoje, queria deixar-te um beijo.”. Assim que terminou a frase aproximou-se de mim apoiando as duas mãos nos meus ombros e prendou-me a face com um dos seus beijos de mel.
O espetáculo começará em cinco minutos.
“Tens de ir, estão à tua espera, vieram ver-te”. “Está muito cheia a sala?”, perguntei-lhe. Entretida a organizar os mais teimosos fios de cabelo fingiste ignorar a interpelação que te atirava, sabias perfeitamente que, independentemente da resposta, o meu estado ansioso apenas se agigantaria. “Vai” - ordenaste-me enquanto virando costas te dirigiste à poltrona guardada no canto da sala – “Vai que eles estão ansiosos por te ver”. “Quando o espetáculo acabar eu volto, estarás aí?”. Parecia-me impossível naquele instante fazer qualquer outra coisa se não acabar a conversa que há pouco encetáramos. Tinhas saudades minhas? Depois de seis meses sem uma chamada ou uma banal troca de mensagens tinhas saudades minhas? Aliás, achaste por algum instante que teres saudades minhas te dava o direito de perturbar a minha já frágil paz minutos antes de subir a palco? No momento em que me despedi de ti estava profundamente divido, se por um lado precisava de ti e estaria disposto a qualquer coisa para te reaver, por outro sentia que aquela intromissão era de tal forma egoísta que me seria impossível deixá-la impune. “Até já”.
Durante a próxima hora, sabendo que me esperavas no camarim, vivi em cima do palco a história que era nossa, e como tinhas razão… era tal e qual como voar. Ao pisar aquelas velhas tábuas sentia-me dono do discernimento, em contacto íntimo com todas as emoções que tentara esconder debaixo do tapete. Viver novamente aquela história permitiu-me dissipar as dúvidas que ainda restavam e acalmar a fúria que aquela visita sem anúncio trouxera.
Assim que as palmas começaram a diminuir de intensidade corri apressadamente para o camarim como se alguma coisa me perseguisse. Silêncio. Estava vazio.
“Sr. Carlos, pediram-me que lhe entregasse este bilhete …Teresa, acho que era esse o seu nome”. Selado numa carta sem endereço nem remetente estava aquele que julgava ser apenas um bilhete de parabenização relativo à noite da estreia. “Dona Lurdes, viu alguém entrar ou sair do meu camarim durante o espetáculo?” perguntei tendo consciência do quão ridícula aquela questão soava. “Não, é impossível, assim que saiu tranquei a porta e apenas a abri quando o vi chegar”.
Procurei de novo no espaço vazio por um qualquer sinal da tua presença mas tudo me parecia normal, exatamente igual à forma como o deixara. Teria sido uma visão? Como? Tinha a certeza de que o toque e o beijo haviam sido reais, eu sentira-os.
Prossegui, abrindo a carta rapidamente, intrigado com o seu conteúdo:
Parabéns pelo espetáculo, foi bom rever-nos. Passou meio ano, é certo, mas desde há umas semanas que me ando a debater quanto à melhor forma de te explicar aquilo que me tem assolado a alma. Por faltar uma desculpa ou por ter a certeza que determinado ato me faria parecer ridícula resolvi esperar até que a ocasião se proporcionasse, e não há melhor desculpa do que um bilhete de parabéns. Tenho saudades tuas, saudades nossas, sinto falta dos jantares e das maratonas cinematográficas até ao nascer do sol. Tenho saudades de ser a tua companhia no camarim e de te esperar enquanto pisas o palco. Tenho saudades de te amar.”


por Diogo Coutinho
Associação de Estudantes do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto
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